Obra de engenharia única na América do Sul faz parte da recuperação de memórias do trem realizada pela comunidade do bairro Várzea Grande
Igor Mallmann
Em meados do século passado, os porcos são tocados por um caminho que sequer merece o nome de estrada. Na vanguarda, alguém vai largando punhados de alimento para incentivar os bichos a percorrerem os quilômetros que restam. O destino é a estação ferroviária da Várzea Grande, no atual município de Gramado. Essa cena jamais saiu da memória de Artemio Marschner, 76 anos, morador da localidade vizinha de Serra Grande. Como ele, muitos tiveram sua vida marcada pela linha de trem que vinha de Porto Alegre. Desativada em 1963, a ferrovia caiu no esquecimento por décadas, mas há dois anos a comunidade vem resgatando a memória do trem, incluindo o rabicho ferroviário, obra de engenharia sem paralelo na América do Sul.
Apesar de ainda jovem quando o trem deixou de fazer o trajeto, Artemio teve a oportunidade de viajar até Novo Hamburgo. “Se tu viajasse na segunda classe, tinha que cuidar para não queimar a camisa, porque ficava muito perto do vagão da locomotiva e podia voar faísca. Agora, quem ia de primeira classe estava tranquilo”, recorda ele.
O tal rabicho
O resgate histórico e físico do legado do trem no bairro Várzea Grande tem o historiador Wanderley Cavalcante como um de seus integrantes. Com o auxílio de vários membros da comunidade organizados em mutirões, foi realizada a revitalização do local do rabicho ferroviário e de seus acessos. Trata-se de um lugar com vista privilegiada de boa parte do bairro e de várias localidades adjacentes. Mas o que exatamente era esse tal de rabicho?
A história nos leva de volta ao início do século XX. A primeira ferrovia do estado havia sido inaugurada em 1874, ligando Porto Alegre a São Leopoldo. Em 1903 a linha férrea chega a Taquara. O povoamento de Gramado nesse período vinha sendo incrementado por levas de imigrantes e descendentes de imigrantes alemães e italianos que chegavam de regiões vizinhas. Em 1912, começa a construção do trecho da ferrovia partindo de Taquara.
Em dois anos, a obra avança até a localidade de Sander, onde se impõe o primeiro desafio geográfico importante. “De Taquara até Sander a elevação é de cerca de apenas 50 metros. Mas a partir de Sander até a estação da Várzea Grande há um trecho com elevação de mais 550 metros”, explica o professor Cavalcante, que veio de Fortaleza, Ceará, para se instalar em Gramado há cinco anos.
O historiador também lembra que em 1914 eclodiu a Primeira Guerra Mundial, dificultando ainda mais os empreendimentos. Por fim, em 1919 o trem chega à Várzea Grande. É nesse momento que se apresenta um desafio ainda maior: para chegar a Gramado havia um morro íngreme demais para a operação normal das locomotivas da época.
“A firma de João Corrêa e filhos (empreiteira que capitaneava a construção da linha férrea) já estava exaurida de recursos na época. E os engenheiros falavam que para ultrapassar esse elevado seria necessária a construção de um túnel, algo que claramente não caberia nos investimentos”, conta Cavalcante.
Foi então que alguém apareceu com a ideia de construir a ferrovia de modo que o trem subisse um trecho de ré. O princípio é o de otimizar a força da locomotiva empurrando o peso dos vagões, ao invés de puxá-los, para vencer a subida. O trem ia de ré até a ponta do chamado rabicho ferroviário e depois a linha era desviada para que ele seguisse normalmente de frente pelo resto do trajeto até Gramado. Essa solução de engenharia foi algo único na América do Sul.
Revolução econômica
Após chegar na Várzea Grande, em 1921 a linha alcançou Gramado e, em 1924, terminou em Canela. Antes da chegada do trem, havia poucas opções para o escoamento da produção. Basicamente, as mercadorias eram movimentadas por meio de carroças tracionadas por animais e por meios fluviais a partir de pontos como Taquara. Com o trem, a velocidade e a capacidade de carga se multiplicaram tremendamente. “A partir da instalação da ferrovia, ninguém mais segura Gramado”, afirma Cavalcante, a respeito da revolução econômica propiciada pelo trem.
Artemio Marchner recorda que o apito do trem no fim da manhã, que ecoava desde a Várzea Grande, servia como relógio para quem estava trabalhando na roça. Mas é claro que o trem não é só uma memória de trabalho. Também ficaram histórias engraçadas, como a de um rapaz que servia no Exército. “Uma vez ele teve que vir de São Leopoldo escondido no banheiro do trem. Não tinha dinheiro para voltar para casa do quartel. Se alguém batia na porta, tinha que dizer que estava usando o banheiro”, conta Artemio, em meio a gargalhadas.
Os relatos dão conta de que todas as classes sociais fizeram uso da ferrovia. Porém, as classes mais abastadas usualmente viajavam no chamado carro-motor, uma espécie de ônibus adaptado para andar sobre trilhos. Como era leve, esse veículo não precisava subir até o rabicho de ré. Nesse caso, quando chegava no topo do morro do rabicho, havia uma engenhosidade chamada de girador para que o carro-motor pudesse manobrar e entrar no sentido certo para a linha até Gramado.
O adeus aos trilhos
Depois de décadas de desenvolvimento transportado pelo trem, a ferrovia Taquara-Canela foi desativada em 1963 e os trilhos foram removidos. “A tendência da adoção do transporte por caminhões e estradas já vinha se impondo no Brasil. Aí é uma questão complexa. Há teses que falam de interesses – até de caráter internacional – em prol do diesel, da borracha e do asfalto”, pondera Cavalcante.
O fato é que até hoje muitos se perguntam o porquê do total abandono do meio ferroviário na região. “Imagine o turismo de Gramado se o trem tivesse sido preservado”, comenta o historiador. Segundo Cavalcante, não é só uma questão de nostalgia, mas também econômica. “Será que não havia um espaço, mínimo que seja, para se ter mantido os trilhos, mesmo que não fosse como carro-chefe da economia, mas talvez para o transporte de passageiros, por exemplo?”, questiona.
Reconstrução da memória
A primeira parte do trabalho de pesquisa que o historiador Wanderley Cavalcante vem realizando, em parceria com outros colegas da área, será em breve lançada em forma de livro. Trata-se de uma obra sobre a história de Gramado até o ano de 1919. Justamente é essa a data da chegada do trem e o assunto terá especial destaque no livro.
“A Gramado de hoje é tributária da história ferroviária de 1919 a 1963. E como se não bastasse isso, temos a estrela dessa história que é o rabicho ferroviário, uma obra de engenharia única na América do Sul”, argumenta Cavalcante. Esse processo de reconstrução da memória, segundo ele, não pode se limitar aos acadêmicos; precisa ser difundida de todas as formas para que toda a comunidade possa acessar a história e ter a consciência do passado da cidade.
“Essa memória até existia, mas estava muito fragmentada”, avalia o historiador, ressaltando a importância de se realizar o trabalho de forma urgente, para evitar a perda de relatos e documentos, tais como fotografias, por exemplo. Conforme ele, muitas frentes de pesquisa vão se abrindo. Um fato interessante é sobre a mão de obra utilizada na construção da linha ferroviária, parte dela composta de ex-presidiários ou presidiários cumprindo pena. “Gostemos ou não, de uma forma ou de outra essas pessoas acabaram por largar aquela vida e se incorporaram na comunidade de Gramado que se formava. Muitos foram trabalhar no comércio e na colônia”, pondera Cavalcante.
Visão histórica e empreendedora
O trabalho de resgate do percurso do trem teve início em 2018 e contou com o apoio de muitos membros da comunidade da Várzea Grande, orientados por uma visão de desenvolvimento para a localidade. “Com o encerramento das atividades de muitas indústrias no bairro, vimos a necessidade de fomentar outras atividades econômicas e atrativos, incluindo o turismo”, relata o presidente da Associação Vale das Montanhas, Dirlei Swaizer. Segundo ele, esse resgate histórico é essencial na construção de um bairro melhor, com as novas gerações tendo o conhecimento do valor do patrimônio que havia ficado esquecido. Nesse sentido, visitas de escolas e outras instituições já foram realizadas no rabicho ferroviário.
O projeto foi, em parte, prejudicado pela pandemia de Covid-19, uma vez que se torna inviável aglomerar pessoas para mutirões. Mas os planos, conforme Dirlei, são ambiciosos e orientados por uma visão empreendedora para o desenvolvimento do bairro. A ideia é transformar o local do rabicho em um parque histórico. Inclusive, o percurso do trem faz parte do projeto de sugestão de um Plano Diretor exclusivo do bairro Várzea Grande, o qual foi apresentado pela associação ao poder público.
Como visitar
O local histórico do Rabicho Ferroviário pode ser facilmente visitado de forma gratuita e a qualquer momento. A dica, porém, é escolher um dia de tempo aberto para aproveitar ao máximo a vista cinematográfica que o local proporciona.
O acesso principal fica nos Altos da Viação Férrea. É bastante amplo e não oferece nenhuma dificuldade ao visitante. Há também uma trilha em meio à mata, para quem quer apreciar a natureza. Nesse caso, o acesso é feito em uma rua antes de subir os Altos da Viação Férrea. Para essa trilha, é indicado o uso de calçado adequado, pois há trechos de subida (ou descida) relativamente íngremes. Confira no mapa abaixo o local onde se encontram os acessos ao Rabicho Ferroviário.
Confira o vídeo que produzimos sobre o Rabicho: