Coluna quinzenal sobre Filosofia
Por Pietro Rutzen
Que prazer é andar de bicicleta.
O vento no rosto, a agilidade, fazer parte da paisagem da cidade simplesmente por se locomover.
O que queremos ao subir neste maravilhoso meio de transporte é atingido porque mecanicamente ele funciona. Enquanto andamos, esperamos que as correias estejam bem lubrificadas, os pneus cheios e os freios funcionando. Assim temos a experiência completa e final que essa tecnologia proporciona. Enquanto pedalamos, se possível, não queremos pensar constantemente nessas variáveis que fazem nosso veículo funcionar.
Que prazer é desfrutar de um bom vinho.
O gosto único, o aroma, a taça na mão. A experiência e o sabor de bebê-lo frequentemente inunda nossa mente e nos esquecemos que para que o líquido pudesse ser desfrutado desta forma, a taça teve de passar por temperaturas altíssimas até se transformar no cristal que temos em mãos. A bebida em si também é o último estágio de uma série de transformações, mas não lembramos constantemente desses processos.
Já faz algum tempo, a tendência para esta “forma final” das experiências se acentua cada vez mais e elas passam a importar mais no cotidiano do que os meios para que ocorram. A virtualização dos processos mentais e operacionais da sociedade intensificam-se dia após dia e ofuscam os meios que os possibilitam.
Hoje quero trazer a urgente mensagem de que devemos decompor estas experiências finais.
Agravada ainda pela situação pandêmica, podemos observar uma pesada despersonalização do coletivo. Apesar dos esforços de algumas frentes em decompor números e devolver a personalização a discussão, podemos notar que cada vez mais pessoas reais tornam-se conceitos distantes e até abstratos.
Não digo com isso que existe uma intenção maligna de que cada vez menos enxerguemos outros seres humanos da sociedade como figurantes de um programa individualista que engloba no máximo nossas famílias e amigos. A intensificação desse fenômeno se dá inconscientemente, no momento em que pulamos para esta “forma final” das experiências sem questionar como chegou até nós.
E é por isso que quero decomposição, já!
É refletir sobre o estado das correias em uma pedalada, e a quantidade de ar nos pneus na próxima. E não tratar a bicicleta meramente como ferramenta, mas como parte de si, pois é como se cada parte dela fosse você mesmo esforçando-se para montar esse grande mecanismo que nos leva mais longe.
Vivemos em tempos tão narcísicos que a valorização sensorial sobre qualquer experiência (ou mesmo produto) tem mais espaço no imaginário do indivíduo do que o sangue, suor e lágrimas que trouxeram tal momento de gozo.
O valor da decomposição no caso do nosso convívio pós moderno está em amenizar o mal estar social. É perceber que o sabor do vinho, além da qualidade da madeira do barril ou o tipo da uva, é fruto do esforço de anos de estudos e combinações que culminam nesse produto tão bem estruturado. É lembrar que quem coletou a uva na parreira e quem cuidou das safras também são os responsáveis pelo gosto que sentimos ao beber. É o conjunto de esforços humanos que nos traz as experiências. Ao perceber isso, decompomos nossas percepções e notamos que a sensação constante de estarmos consumindo pequenas cápsulas de experiências plásticas que se materializam de forma mágica tem origem na nossa incapacidade de assimilar o todo.
Da próxima vez que enxergarmos uma divulgação de campanha de doações, devemos nos lembrar de que não é apenas uma imagem de valor estético. Devemos decompor e recordar que calor, abrigo, alimento e alento são pontes de interação humana, cujas consequências, em ambos os lados, transformam a realidade.
Por meio do questionamento e da consciência da humanidade presente nos processos que resultam no estado atual da nossa realidade é que conseguiremos provocar mudanças reais.
O questionamento que incentivo hoje ilumina um pouco dos esforços humanos que cada vez mais permanecem na penumbra. No universo dos questionamentos é meramente uma ínfima partícula. Mas que nos ajuda a despertar para outras questões para a realidade direta e imediata.
Finalmente, deixo aqui o meu contato, para que eu possa saber também que questionamentos vocês têm tido. Almejo que as publicações aqui possam também ser fonte de diálogo e que questionamentos e debates também possam ser discutidos para enriquecer o nosso cotidiano.
Até a próxima!
Sobre o autor
Meu nome é Pietro, sou estudante de Filosofia na UCS em Caxias do Sul. Trabalho também com tecnologia diariamente e encontro muita riqueza na intersecção entre as duas áreas. Para mim, a filosofia nos apresenta a possibilidade de moldar diferentes lentes para com as quais entender a realidade, trazendo também o poder de manter a mente disponível para novas ideias sem deixar de questionar e melhorar o mundo ao nosso redor.
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